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PAPER SERIES
part of the curated project TIME AS MATTER AND PLACE
by Ana Matos (Salgadeiras Gallery)
at DRAWING ROOM LISBOA
with:
Time as matter and place
Drawing Room Lisboa 2020
The question “would you like me to draw you a picture?” usually implies the need to explain a concept or circumstance that is complex and that can be “simplified” by means of a representation with lines and points on a surface. In other words: a drawing, in its most elementary form of expression. Together, in a multiplicity of combinations and meanings, lines and points develop in a game of forces, creating forms, movement, tension, direction. From this lexicon the world is gradually organized on a surface with some order, meaning, perhaps beauty. In “Senhor Valéry”, Gonçalo M. Tavares says:
“If the vertical joins the horizontal there is always a point that is captured. And then he drew.
— That point — murmured Mr. Valéry, [...] — that point was me.
— Destiny — Mr. Valéry said at last — that I don’t know what it can be.”
There is something of abstract in thought, and Drawing, in its endogenous condition, appears as a tool of intellectual and mental exercise. It is in this act of questioning, of reflecting on the context, creating a possible image of it, that Drawing meets Philosophy. And it is in this dialogue that Rui Horta Pereira and Rui Soares Costas develop their artistic practice, as can be inferred from their responses to the question of what their understanding of Drawing is:
“A privileged mediator to understand the universe” — Rui Horta Pereira
“Drawing is a process, an instrument of thought” — Rui Soares Costa
However, the curatorial proposal presented brings to the surface other considerations that are common to the artistic process of both artists and which has to do with the formalities of Drawing as an expanded territory, beyond its formal canons, using processes and tools that are less conventional.
Trained in Sculpture, Rui Horta Pereira became interested in Drawing very early, not only for the theoretical reflections it suggests but also for the use of materials and processes, which themselves reflect an ethical and social stand regarding the issues of sustainability. In that context, and especially since 2012, he has been developing several projects in a clear and acknowledged appropriation of resources, whether natural resources, such as sun or rainwater, or others like wooden boards from one of his sculptures or scrap paper from other drawings of his, or even plastic bottles that become sculptures. “Livro Sombra” (“Shadow Book”) and “Sol Fino” (“Fine Sun”) are the result of a process similar to Heliography, in which the sunlight falls slowly and for a long period of time on overlapping cards, creating lines and shapes, light and shadow. After all, as Juan José Gómez Molina says, in “Las lecciones del dibujo”: “The essence of the drawing will be the fabrication of the object through its negation, through the shadow, the concealment of the light in the line”. Drawings that, in the purity of the lines and in their monochromatic compositions, reveal a poetry that brings or attempts to bring a certain order to chaos.
Rui Soares Costa has been exploring multiple supports and tools in his Drawing, crossing this form of expression with the objectual, the philosophy, the thought in an equation of controlled parameters, around time as a subject. The time he records on the sheet of paper or the wooden board as if he were a human seismograph, each line a moment that condenses and concentrates on a portion of matter. Drawings made with fire that, in an apparent paradox, briefly record time, which, as Rui Soares Costa says, “is the only thing we cannot add to existence”. However, “Black Mirror Series” presents us with other perplexities: at first glance we don't see anything, we look again, we have to move closer, and closer, we try different positions in a performative game proposed by Rui Soares Costa. The tension that Kandinsky refers to as the “living force of the movement” arises. When we are almost immersed in the piece, and our reflection in this black mirror fades, we become free from external factors and, behold, the line, the shape, the shadow, the translucency begin to reveal themselves, and the drawing appears, clear, pure. No, it is not obvious, nor immediate; rather, it is seductive, it extends over time. It whispers a verse by José Tolentino de Mendonça: “I tied the senses to the darkness / standing in front of your door / I no longer ask.”
The drawing is made. All it took was making room for time.
Ana Matos
Lisbon, October 2020
(Versão em Português)
O tempo como matéria e lugar
À pergunta “queres que te faça um desenho?” está, de uma forma geral, subjacente a intenção de explicar um conceito ou circunstância que, à partida, se manifesta complexo, fazendo parte dessa “simplificação” a sua representação em linhas e pontos sobre uma superfície. Um desenho, portanto, na sua mais elementar forma de expressão. Em conjunto, numa multiplicidade de combinações e acepções, linhas e pontos desenvolvem-se num jogo de forças, criando formas, movimento, tensão, direcção. É a partir desse léxico que o mundo se vai organizando sobre uma superfície com alguma ordem, significado, beleza talvez. No seu “Senhor Valéry”, diz Gonçalo M. Tavares:
“Se a vertical se une à horizontal existe sempre um ponto que é capturado.
E depois desenhou.
— Esse ponto — murmurou o senhor Valéry, [...] — esse ponto fui eu.
— O Destino — disse, por fim, o senhor Valéry — isso é que desconheço o que seja.”
Há qualquer coisa de abstracto no pensamento, e o Desenho, nessa sua condição endógena, surge como uma ferramenta intelectual e de exercício mental. É nessa acção de questionar, de reflectir sobre o entorno, configurando-lhe uma possível imagem, que o Desenho se encontra com a Filosofia. E é nesse diálogo que Rui Horta Pereira e Rui Soares Costas desenvolvem a sua prática artística, como bem se pode inferir das suas respostas à questão de como entendem o Desenho:
“Um mediador privilegiado para entender o universo” — Rui Horta Pereira
“Desenho é processo, um instrumento do pensamento” — Rui Soares Costa
No entanto, a proposta curatorial apresentada traz-nos outras considerações comuns ao processo artístico de ambos os artistas e que tem a ver com as formalidades do Desenho enquanto território expandido, para além dos seus cânones formais, recorrendo a processos e utensílios menos convencionais nesta disciplina.
Formado em Escultura, Rui Horta Pereira interessou-se desde muito cedo pelo Desenho, não só pelas reflexões teóricas que sugere, como no uso de materiais e processos, eles próprios o reflexo de uma posição ética e social quanto às questões da sustentabilidade. Nesse sentido, e sobretudo desde 2012, tem vindo a desenvolver diversos projectos numa clara e assumida apropriação de recursos sejam naturais, como sol ou água da chuva, ou outros como placas de madeira de uma sua escultura ou sobras de papel de outros desenhos seus, ou ainda garrafas de plástico que se transformam em esculturas. “Livro Sombra” e “Sol Fino” resultam de um processo semelhante à Heliografia, através do qual a luz solar incide lenta e prolongadamente sobre uma sobreposição de cartolinas, criando linhas e formas, luz e sombra. Afinal, como refere Juan José Gómez Molina, em “Las lecciones del dibujo”: “Ia esencia del dibujo será Ia fabricación del objecto mediante su negación, mediante Ia sombra, Ia ocultación de Ia luz en el trazo”. Desenhos estes que, na pureza da linhas e nas suas composições monocromáticas, nos revelam uma poesia que traz ou tenta trazer uma certa ordem ao caos.
Rui Soares Costa tem vindo a explorar múltiplos suportes e utensílios na sua prática do Desenho, cruzando esta expressão com o objectual, a filosofia, o pensamento numa equação de parâmetros controlados, em torno do tempo como assunto. O tempo que regista na folha de papel ou na placa de madeira, como se de um sismógrafo humano se tratasse, cada linha um momento que se condensa e concentra numa porção de matéria. Desenhos feitos com o fogo, que, num aparente paradoxo, registam fugazmente o tempo, aquele, como diz Rui Soares Costa, “é a única coisa que não poderemos adicionar à existência.” No entanto, “Black Mirror Series” coloca-nos perante outras perplexidades: num primeiro olhar não vemos nada, voltamos a olhar, temos que nos aproximar, e mais ainda, mudamos de posição num jogo performativo que Rui Soares Costa nos propoe. Surge a tal tensão que Kandinsky refere como sendo a “força viva do movimento”. Quando estamos quase a imergir na peça, e o nosso reflexo neste espelho negro se desvanece, libertamo-nos dos factores externos, eis que a linha, a forma, a sombra, a translucidez começam a revelar-se e o desenho surge, límpido, puro. Não, não é óbvio, nem imediato, antes é sedutor, prolonga-se no tempo. Sussurra um verso de José Tolentino de Mendonça: “Atei os sentidos à escuridão / parado diante da tua porta / já não pergunto.”
Fez-se o desenho. Bastou dar lugar ao tempo.
Ana Matos
Lisboa, Outubro 2020
October 14 - October 18, 2020
DRAWING ROOM
Sociedade Nacional de Belas Artes
Lisbon, PT